Teoria da História e Historiografia - 2 O ofício do historiador

 

Introudução

As décadas de 1960 e 1970 representaram uma época de transformações profundas na disciplina histórica. Sob o impacto de eventos globais e movimentos sociais, os historiadores revisitaram e reinventaram suas abordagens metodológicas e teóricas. A interação com outras ciências sociais, como a sociologia e a antropologia, bem como uma nova ênfase na história cultural, moldou uma disciplina historicamente rica e dinâmica. Esta era de revisões e influências não apenas redefiniu o papel do historiador, mas também enriqueceu nosso entendimento do passado e suas complexidades.

1 A distinção entre história narrativa e história problema

O embate entre a história narrativa e a história problema marcou uma mudança significativa no campo da historiografia. Até o final dos anos 1920, a história narrativa, influenciada pelo historicismo alemão e defendida pelos metódicos, focava em eventos políticos e figuras históricas, construindo narrativas lineares e nacionalistas. Os historiadores dos Annales, como Marc Bloch e Lucien Febvre, contestaram esse modelo, propondo uma abordagem interdisciplinar e problemática. A história problema, como defendida pelos Annales, sugere que os historiadores devem criar problemas e questões a partir de suas próprias motivações, em vez de aceitar fatos históricos como dados já constituídos. Essa abordagem, adotada pela revista Annales desde 1929, desvincula-se do viés patriótico e procura entender o passado a partir de problemas do presente.

O modelo da história narrativa foi criticado por sua abordagem cronológica, personalista e nacionalista, privilegiando eventos e figuras em detrimento de questões sociais mais amplas. Os Annales introduziram a ideia de uma História Total, incorporando diversas disciplinas e perspectivas, refletindo as motivações dos historiadores de sua época. Essa nova abordagem desafiou a visão tradicional do passado, enfocando questões sociais e culturais complexas. Mesmo enfrentando desafios durante a Segunda Guerra Mundial, a revista Annales continuou a se reinventar, mantendo sua influência na historiografia e estimulando historiadores a olhar para o passado de maneiras inovadoras e problemáticas.

2 1960–1970: identificando as mudanças na história

Na década de 1960, acontecimentos globais marcantes, como a Guerra do Vietnã, os movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos e os protestos estudantis em diversas partes do mundo, provocaram transformações significativas na sociedade e na academia. Na França, os protestos de 1968 na Universidade de Paris foram emblemáticos, impulsionando uma onda de mobilizações em todo o mundo. Esse período também foi testemunha do surgimento de novas correntes historiográficas, como a História das Mentalidades e a Micro-História, que desafiaram a abordagem tradicional, expandindo os horizontes da ciência histórica.

A Nova Esquerda e a História Social: Uma Renovação Teórica:

Do outro lado do Canal da Mancha, a New Left Review foi fundada por historiadores insatisfeitos com a ortodoxia marxista. Personalidades como Eric Hobsbawm e Stuart Hall lideraram esse movimento, redefinindo a análise da história social ao enfocar não apenas a economia, mas também a cultura e a identidade. Obras como "A Formação da Classe Operária Inglesa" de Edward Palmer Thompson e "A Era dos Extremos" de Eric Hobsbawm ofereceram perspectivas inovadoras, desafiando as visões convencionais da história do século XX. Essas abordagens, balanceando rigor científico e engajamento político, continuam a influenciar o campo da historiografia contemporânea.

Fernand Braudel e a Longa Duração: Uma Perspectiva Temporal Inovadora:

Entre 1946 e 1968, Fernand Braudel liderou a revista Annales, propondo uma abordagem pioneira baseada na longa duração. Braudel defendia que a história deveria ser vista em uma escala temporal vasta, transcendo eventos pontuais para compreender os princípios estruturais da sociedade. Suas ideias influenciaram uma nova geração de historiadores, consolidando uma visão mais ampla e profunda da disciplina histórica.

3 1970: uma época de revisões e influências

Nos anos 1970, a disciplina histórica se tornou cada vez mais interdisciplinar, construindo pontes com campos como sociologia, antropologia e economia. Esse movimento de intercâmbio não foi novo, mas ganhou força a partir do final dos anos 1960. Historiadores como Febvre e Bloch já haviam incorporado influências da geografia e da psicologia em suas pesquisas. Contudo, a década de 1960 viu uma intensificação do diálogo da história com a sociologia, apesar de críticas mútuas que remontam ao século XIX. A chamada "virada antropológica" liderada por Roger Chartier revitalizou a história cultural, reintegrando a narrativa literária na pesquisa histórica, sem comprometer sua rigorosidade científica.

Reflexão sobre o Papel da História e os Segmentos Populares:

Após os tumultos de 1968, historiadores e outros cientistas sociais redefiniram seu papel e relação com o objeto de estudo: o ser humano em seu contexto temporal. Uma preocupação central nesse período foi a inclusão dos segmentos populares como protagonistas históricos, marcando uma virada significativa. Enquanto obras como "A Invenção do Cotidiano" de Michel de Certeau examinaram como as pessoas se apropriam da cultura de massa, Edward Palmer Thompson, em "Costumes em Comum", analisou os protestos populares contra o aumento dos preços do trigo na Inglaterra, destacando uma moralidade distinta das classes dominantes. Esta virada para uma "história dos vencidos" ou "história vista de baixo" representou um novo capítulo na narrativa histórica, enfocando as experiências e perspectivas das classes subalternas.

A Interseção com Outras Ciências Sociais e a Virada Antropológica:

Nos anos 1970, a história se enredou ainda mais com outras ciências sociais, especialmente a antropologia e a sociologia. A interação entre essas disciplinas se intensificou, resultando em abordagens mais profundas e interdisciplinares. A "virada antropológica", liderada por Roger Chartier, não apenas resgatou a dimensão narrativa e literária da história, mas também aprofundou o entendimento sobre a cultura popular e as dinâmicas sociais. Este período marcou uma fase crucial na evolução da disciplina histórica, enriquecendo suas análises e abrindo novas perspectivas para compreender o passado e suas conexões com o presente.

Conclusão

As décadas de 1960 e 1970 marcam um período crucial na história da historiografia, onde a disciplina se expandiu para novos horizontes. A interseção com outras ciências sociais e a virada antropológica revitalizaram a história, trazendo uma compreensão mais profunda das experiências humanas e das dinâmicas sociais. A ênfase na "história dos vencidos" e a narrativa vista de baixo trouxeram à luz as vozes marginalizadas, enriquecendo nosso conhecimento sobre diferentes segmentos da sociedade. Este período de intensa reflexão e diálogo interdisciplinar não apenas transformou a maneira como contamos e entendemos o passado, mas também lançou as bases para uma disciplina histórica mais inclusiva, dinâmica e perspicaz, pronta para enfrentar os desafios complexos do mundo contemporâneo.

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