2. Debates historiográficos sobre a transição da Idade Média para a Idade Moderna

 


Introdução

A Idade Moderna representou um período de profundas mudanças nas sociedades europeias ocidentais, abrangendo transformações nos campos cultural, econômico, político e social. Estas transformações muitas vezes possuíam elementos de continuidade em relação ao período feudal, seja devido ao seu início durante o período medieval ou devido à divergência nas cronologias das mudanças, uma vez que o tempo das práticas políticas, por exemplo, diferia do tempo das mudanças nas mentalidades.

Neste capítulo, exploraremos as diversas perspectivas propostas por historiadores para compreender as transformações que ocorreram na sociedade europeia entre os séculos XIV, XV e XVI. Nosso estudo abrangerá tanto o aspecto econômico, como a transição do feudalismo para o capitalismo, quanto o aspecto cultural, englobando as alterações na cultura, mentalidades e religião da época.

1. A historiografia sobre a Idade Moderna

A historiografia da Idade Moderna é moldada por contextos culturais, econômicos, políticos e sociais, influenciando a escolha de abordagens e objetos de estudo. A transição da Idade Média para a Idade Moderna é analisada através de diferentes perspectivas. O conceito de "modernidade" envolve uma ruptura com o passado, uma noção que se desenvolveu gradualmente nas sociedades ocidentais, culminando na ideia de progresso.

A compreensão da modernidade é exemplificada pela visão de Charles Baudelaire, que observou mudanças nos costumes, arte e moda de sua época. Na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, ser moderno significava contrastar com o mundo medieval, marcando um amplo conjunto de transformações nas estruturas sociais do Ocidente.

A historiografia também abrange outros enfoques, como a análise das origens do poder régio e monárquico em obras como "Os reis taumaturgos" de Marc Bloch e "A sociedade de corte" de Norbert Elias. No campo político, historiadores têm revisitado a transição para o Estado moderno, destacando relações clientelistas, linhagens e estruturas domésticas, além do aparato burocrático.

Mudanças cruciais na historiografia da modernidade estão relacionadas a abordagens decoloniais e pós-coloniais, questionando hierarquias europeias e colonialismo. Aníbal Quijano vinculou colonialidade e modernidade, enfatizando que a colonialidade persiste mesmo após os regimes coloniais serem encerrados. Enrique Dussel ligou modernidade à violência, evidenciando a relação entre a supremacia europeia e a imposição do "processo civilizador".

Três principais debates historiográficos emergem: a passagem da Idade Média para a Idade Moderna, que discute continuidades e rupturas; a transição do feudalismo para o capitalismo mercantil, enfocando mudanças econômicas, políticas e sociais; e as transformações culturais e mentais, caracterizadas por uma mentalidade antropocêntrica e racionalista ligada a práticas comerciais e urbanas.

2. As origens econômicas da Idade Moderna

A transição econômica da Idade Média para a Idade Moderna é objeto de debate, especialmente em relação à mudança do sistema feudal para o capitalismo. Karl Marx e Max Weber, assim como historiadores posteriores, investigaram as origens do capitalismo na Europa ocidental dos séculos XIV, XV e XVI. O debate inclui teorias divergentes sobre a influência da circulação de mercadorias entre campo e cidade e a crise estrutural do sistema feudal no surgimento do capitalismo.

Maurice Dobb, na década de 1940, propôs que o capitalismo derivava da circulação de mercadorias em meio à crise feudal. Ele usava categorias de Marx para definir o sistema, envolvendo propriedade dos meios de produção e relação com a força de trabalho. No entanto, Paul Sweezy contestou essa visão, enfatizando que o feudalismo produzia valores de uso e o valor de troca era impulsionado pelo comércio, chamando a transição de pré-capitalista de mercadorias, destacando a coexistência de várias classes.

Perry Anderson, influenciado pelo marxismo, ligou o surgimento do capitalismo ao Estado absolutista. Ele argumentava que o Estado mantinha a ordem feudal e não havia ruptura clara na passagem do feudalismo para a modernidade. Essas interpretações eram frequentemente lineares e progressivas, presumindo o surgimento do capitalismo como inevitável.

No entanto, Ellen Wood desafiou essa visão determinista, rejeitando a ideia de que o capitalismo estava sempre latente e apenas precisava ser libertado. Ela definiu o capitalismo como um sistema em que bens e serviços são produzidos para lucro, com trabalho se tornando mercadoria e competição e maximização de lucro sendo regras fundamentais. Ela criticou a continuidade entre sociedades pré-capitalistas e capitalistas e argumentou que o capitalismo não pode ser reduzido ao mercado, Estado, dinheiro ou trabalho.

Essa perspectiva é compartilhada por Le Goff, que propôs uma "longa Idade Média", enfatizando que a economia rural persistiu mesmo quando o comércio e o sistema bancário emergiam. Em suma, as interpretações das origens do capitalismo variam desde a influência da circulação de mercadorias até a relação entre Estado absolutista e capitalismo, sendo desafiadas por visões que buscam definir o capitalismo pela produção de mercadorias voltada para lucro e a exploração da força de trabalho.

3. As origens culturais da Idade Moderna

O Renascimento é historicamente considerado o marco cultural da transição da Idade Média para a Idade Moderna. A visão tradicional, forjada por historiadores como Michelet e Burckhardt no século XIX, retrata o Renascimento como um movimento intelectual centrado no homem, resultante do desenvolvimento comercial e de debates culturais. No entanto, essa visão contrasta com interpretações mais recentes que desafiam a ideia de uma ruptura radical entre os dois períodos.

Autores como Jacob Burckhardt e Michelet destacaram o Renascimento como uma passagem para o mundo moderno, enfatizando aspectos como a volta ao paganismo, a ênfase no indivíduo e a liberdade. Essa perspectiva foi amplamente aceita, mas críticos modernos, como Peter Burke, questionaram sua validade, apontando que muitas inovações renascentistas têm raízes medievais.

A ideia de uma divisão clara entre Idade Média e Renascimento é problematizada, visto que o pensamento humanista, o individualismo e o racionalismo podem ser encontrados desde o século XII. Autores como Johan Huizinga e Le Goff criticaram a visão dramática da Idade Média, afirmando que muitas interpretações da conquista da América, por exemplo, são baseadas em visões distorcidas desse período.

A Reforma Protestante é outro ponto de discussão. A visão tradicional destaca-a como uma ruptura cultural e religiosa marcante, mas alguns historiadores, como Le Goff, enfatizam que a religião continuou a ser uma força dominante mesmo após a Reforma, e que a polarização entre teocentrismo e antropocentrismo não resultou em uma imediata laicização das relações sociais.

Assim, o Renascimento é reinterpretado como um processo de síntese de inovações ao longo de um período mais longo, desafiando a ideia de um contraste nítido entre Idade Média e Idade Moderna. A Reforma Protestante também é analisada sob a perspectiva da continuidade da influência religiosa na sociedade.

Conclusão

A compreensão da transição da Idade Média para a Idade Moderna é complexa e multifacetada, envolvendo debates historiográficos profundos sobre a continuidade e a ruptura entre esses períodos. Enquanto a tradição historiográfica tradicional enfatiza uma divisão dramática, com o Renascimento e a Reforma como marcos decisivos, abordagens mais contemporâneas e críticas têm desafiado essa visão, destacando as nuances e as raízes medievais presentes nas transformações culturais e econômicas.

A noção de modernidade, muitas vezes ligada à ideia de progresso e ruptura, é examinada sob perspectivas mais amplas, que consideram as influências culturais, sociais, econômicas e políticas que moldaram essa transição. Enquanto a historiografia tradicional busca pontos de virada claros, as abordagens mais recentes ressaltam a complexidade e a interconexão de fatores que contribuíram para as mudanças.

A análise das origens do capitalismo também ilustra a diversidade de interpretações, desde a influência da circulação de mercadorias até a relação entre Estado e economia. Enquanto algumas visões enfatizam a continuidade, outras destacam a transformação fundamental na produção de mercadorias voltada para o lucro e a exploração da força de trabalho, rejeitando simplificações deterministas.

No contexto cultural, o Renascimento e a Reforma continuam sendo focos de discussão, sendo questionada a ideia de uma ruptura abrupta entre a Idade Média e a Idade Moderna. Enquanto o Renascimento é reinterpretado como um processo de síntese e continuidade, a Reforma é examinada como uma influência religiosa persistente, desafiando a narrativa de uma laicização rápida da sociedade.

Em última análise, a transição da Idade Média para a Idade Moderna é um campo em constante evolução na historiografia, onde a diversidade de perspectivas enriquece nossa compreensão das complexas transformações que moldaram o mundo ocidental. Através do diálogo entre interpretações tradicionais e abordagens críticas, podemos obter uma visão mais abrangente e matizada desses períodos cruciais da história europeia.

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